quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Laura e os apagões


Laura acordou mais tarde aquela manhã. Teve uns sonhos esquisitos, com seres fantásticos, fadas, duendes, unicórnios, cavalos alados. Acabou perdendo a hora. Era quarta-feira e ela chegaria atrasada ao trabalho. Logo na semana em que ela tinha um novo chefe, que ainda estava sondando o terreno. Que loucura, pensou, e correu para o chuveiro. Enquanto tomava um rápido café, ouvia as notícias na TV. Volta da inflação. Aumento na conta de energia. Alta nos preços da gasolina. Falta de água. E agora o mais recente: os apagões.

Desligou a TV, pegou a bolsa e saiu rapidamente. Por sorte, ou por milagre, o metrô não estava tão lotado. Conseguiu até sentar-se. No caminho para o trabalho, deixou a cabeça vagar. Lembrou do noticiário. O prognóstico não era bom. Tudo estava aumentando, menos seu salário. Este, aliás, estava atrasado há quase dois meses. A crise atingiu a empresa em que ela trabalhava. Já falavam em cortes. Diziam, há dez dias, que o salário seria pago "amanhã". Um amanhã que não chegava nunca. Laura já estava além do vermelho. Não sabia quantos dias ainda poderia suportar naquela situação. Precisava de dinheiro para "ontem".

Perdida em seus pensamentos, quase passou da sua estação. Desceu apressadamente e olhou o relógio. Oito e quinze. Não estava tão atrasada, afinal. Quando ia tomar as costumeiras escadas (eram só três lances, mais rápido e ainda se exercitava), o elevador abriu as portas. Como estava atrasada, não titubeou. Acabou entrando. Mais outras quinze pessoas entraram também. Perguntou-se como cabia tanta gente naquela caixinha. Pelo menos, a viagem seria rápida, como um piscar de olhos. Piscou demoradamente, o tempo de as portas se abrirem. Quando abriu os olhos, o elevador deu um tranco. As luzes piscaram e tudo se apagou.

Socorro, as pessoas já começavam a gritar. O alarme soou. Alguém acionou o interfone para chamar o resgate. Do outro lado, um homem aflito tentava, em vão, acalmar as pessoas presas no  elevador. Disse que em alguns minutos elas estariam a salvo.

Uma senhora perguntou pelo gerador. Não havia mais. Era preciso cortar gastos, sabe como é. Uma mulher já começava a chorar. Era meio claustrofóbica, ela explicava aos prantos. O calor estava infernal. As pessoas, apertadas feito sardinhas enlatadas, começavam a suar. Laura tentou manter a calma. Olhou as horas. Já havia passado cinco minutos desde que a energia acabara.

Cinco minutos de pura agonia. Lincoln diria que, se quiser conhecer as pessoas, dê-lhes o poder. Laura descobriu, naquele instante, que bastava trancafiá-las em uma caixa retangular, no escuro e no calor. Ali mostrava-se a natureza humana de fato. Minutos de desespero, de salve-se quem puder. Laura cantava mentalmente, tentando manter-se absorta, alheia àquele ambiente agonizante.

Os odores misturavam-se: o perfume enjoativo da menina de óculos, a loção pós-barba do rapaz metido a pegador, o suor que escorria das têmporas da mulher claustrofóbica e... espera, isso é cheiro de pum! Laura quase pensou alto. Aí era demais! Todo mundo sabe que existe uma etiqueta de elevadores, em que a regra principal é jamais soltar pum. Mesmo em situações de desespero como aquela, as pessoas precisavam aprender a segurar seus intestinos fétidos! Deveriam mesmo era trocar aquelas plaquinhas ridículas, em um português duvidoso de "antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado no andar" por "nunca, jamais, em hipótese alguma, solte pum no elevador!". Com letras garrafais e várias exclamações.

Laura abanava-se e prendia a respiração, tentando livrar-se dos odores. Começava a suar também. Oito minutos já. Oito longos minutos de desespero. Fechou os olhos. Entorpecida pela mistura de odores, enfraquecida pelo calor e pelo estresse da situação, ela foi ao chão. Apagou, como as luzes do elevador, do bairro, da cidade e dos estados vizinhos.

De repente, viu-se no universo do sonho que tivera mais cedo. Estava em um reino de fadas, de seres minúsculos, rodeada de verde por todos os lados. Já não tinha mais os problemas que conhecia. Porque no reino das fadas, não havia dinheiro. Tampouco preocupações com gasolina ou energia. Ela galopava no lombo de cavalos alados e era iluminada por vagalumes. Havia água em abundância, mas sem desperdício. Não havia preocupações com horário, com cortes de empregados. Não havia metrô lotado. E nem elevadores.

Ela está respirando!, ouviu alguém gritar, tirando-a bruscamente da deliciosa paisagem onírica. Ouvia vozes ao longe, até que um sacolejar a despertou. Abriu os olhos e viu algumas pessoas ao seu redor. O elevador já tinha as portas abertas. A energia havia voltado. Perguntou, cambaleante, por quanto tempo ficara desacordada. Cinco minutos, um homem lhe informou. O mesmo homem que, quando recobrou a consciência, ela identificou como seu novo chefe, também lhe contou que ela falava coisas sem sentido, algo sobre unicórnios e botos cor-de-rosa. Laura corou de vergonha. Estava não só atrasada e arrasada, como teve seus sonhos desnudados na frente de várias pessoas, seu chefe entre elas. Continuava no vermelho, sem dinheiro e cheia de problemas. Problemas adicionais, aliás. Seria motivo de piadas. Se ao menos pudesse voltar ao ambiente de sonhos.

Ainda deitada no chão do elevador, Laura segurou a respiração, até que o ar começou a lhe faltar. As pessoas olhavam sem entender. Ela sentiu aos poucos a consciência ir baixando a guarda,  quando então se viu no reino das fadas novamente. Só mais uma vez. A realidade já havia lhe roubado esse sonho duas vezes aquela manhã. Iria enganá-la só mais um pouquinho. Abraçou um unicórnio, subiu no cavalo alado e saiu em um voo galopante no reino da fantasia. Um reino sem inflação. Sem salários congelados. Sem alta de preços. E sem apagões, a não ser aqueles que a transportassem para bem longe de tudo isso.

17 comentários:

  1. Aí Hélia, seus textos são lindos! <3
    Tenho medo desses dias apocalipticos, o mundo parece que está com os dias contados. Pelo menos o mundo que a gente conhece hoje. Tenebroso :x

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  2. Obrigada! Pois é, tenho medo também. Só rindo mesmo rsrs. Abraços.

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  3. Delicioso e mais profundo do que supunha,,,

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  4. Eu espero muito mais histórias sobre a Laura! Você escreve muito bem e é uma leitura fácil você pensa "vou ler só mais um pouquinho" e quando volta a si já está sorrindo com o final desejando que seus desmaios a levassem ao mundo da Laura! Descobri o blog hoje, mas pode considerar que ganhou uma visitante assídua.
    efeitotranslucido.blogspot.com

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    1. Que bom que gostou, Mirelle! Em breve terão novas histórias como a da Laura por aqui. Ficarei feliz com sua visita. Bjs

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  5. Também quero conhecer esse reino, parece ser bem mais interessante que esse em onde vivemos.

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  6. Nossa... 02:15 da madrugada... Li este esplendido texto que faz você pensar além dos pensamentos... Talvez uma reflexão...
    Seus textos são ótimos! É a primeira vez que entro no seu blog e lhe garanto, suas histórias são uma verdadeira vitrine para seu talento. Parabéns!

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    1. Oi Diogo! Que honra, a essa hora da madrugada, você lendo meus textos rsrs. Fico muito feliz que tenha gostado. Criei o blog há pouco tempo, como um espaço de lazer e para treinar um pouco minha escrita. Feedbacks positivos como o seu me fazem ter mais vontade de criar histórias novas e levar isso adiante. Muito obrigada :)

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  7. Que bela história!
    Você escreve muito bem! Viajei junto com Laura nessa aventura!
    Parabéns, :*

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    1. Obrigada, Iandara! Fico feliz pela visita e pelo comentário aqui no meu cantinho. Bjs <3

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