sexta-feira, 19 de junho de 2015

Anedonia: um conto pós-moderno


Quarta-feira à noite. Ele serviu-se da costumeira taça de vinho diária. Fazia bem à saúde, já estava provado. Lembrou-se de alguns anos atrás, quando brindava com a ex-esposa com o mesmo vinho que degustava agora. Assim que casaram, tinham o hábito de brindar a tudo: à vida, à saúde, à paixão, ao amor, à sexta-feira, à quarta-feira e até ao fato de terem um bom vinho para beberem. E, nessa noite, lá estava ele: sem paixão, sem amor, sem companhia, solitário. Só lhe restara o vinho. Pensou que podia brindar a ele, o vinho, companheiro de sempre. Mas lembrou-se de que não tinha com quem brindar. Então continuou ali, simplesmente bebericando sua taça. Tentando, de alguma forma, entregar-se aos prazeres etílicos.

Como o estado ébrio demorou a aparecer, permitiu-se mais uma taça. E mais outra. E outra. A garrafa inteira. Algumas taças de vinho deixavam-no agitado. Toda a garrafa deixava-o deprimido. Percebeu-se evocando memórias há muito esquecidas. Se tivesse companhia agora, um ombro qualquer, não seria de espantar que o alugasse para derramar seu pranto. Entorpecido, percebeu algumas lágrimas rolarem. Em seguida, soluços. Estava tão bêbado que chorava?

Olhando para sua taça de vinho, viu-a. Linda, adorável, inteligente, sensual. A mulher da sua vida. Aquela que lhe arrebatara o coração. A quem jurou amar na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte os separasse. A morte não os separou. Quem se encarregou disso foi a própria vida. As agendas incompatíveis, o dia a dia sempre corrido, a rotina. Era perfeito quando estavam apaixonados. Quando a paixão foi embora, cerca de um ano depois, não cedeu lugar ao amor. Não havia cumplicidade suficiente para manterem juntas as escovas de dente nem dividirem os sonhos na mesma cama. As diferenças começaram a gritar. Já não havia um ponto comum que mantivesse aquelas duas individualidades em harmonia. Para quê insistir no que estava errado? Chegaram à mesma conclusão juntos. O amor jurado eterno se desfez após um ano e dois meses de união.

Fazia quatro anos que haviam se separado. A fase de raiva explícita e resquícios de sentimentos velados havia sido superada. Falar ou pensar nela já não lhe revirava o estômago nem provocava náuseas. Aliás, até aquela quarta-feira, quando, sob o efeito do vinho, sentiu algo a que ele podia chamar de saudade, a ex-mulher não lhe provocava qualquer efeito: nem raiva, nem saudade. Nada. Pensou estar imune a ela. Pensou estar imune à vida, na verdade. Já não sentia nada. Nem raiva, nem amor, nem dor, nem prazer.

Prazer. Essa era uma palavra quase ausente do seu atual repertório. Sensação há muito inexplorada. O mais contraditório era que ele estava constantemente em busca do prazer. Levava a sério o tal do carpe diem, pois, como tudo que lhe acontecia era tão rápido, tinha o amanhã como incerto demais para fazer planos a longo prazo. Prazer era algo que devia ser buscado a todo custo, comprado até. No entanto, era dificilmente encontrado. E, quando pensava experimentar a sensação, ela era tão fugaz que logo a perdia.

Assim foi com o carro de luxo há muito tempo desejado. Colocou-o no patamar de objeto de desejo, do tipo que só lhe era permitido sonhar e admirar de longe. Poder possuir, um dia, o carro dos sonhos era, para ele, uma meta, um plano que deveria pôr em prática para provar ao mundo que, sim, ele era capaz. O carrão que sonhava ter um dia era essencialmente um símbolo, um significante que o inseria na categoria das pessoas diferenciadas. Trabalhou arduamente para isso. Abriu mão de muitas coisas. Mas, quando pode, enfim, comprá-lo, comportou-se como uma criança com um brinquedo novo: ficou excitado por pouquíssimo tempo e logo o brinquedinho, no caso, o carrão, perdeu a graça.

Na busca incessante por prazer, acumulou muitos bens materiais. Sentir prazer era algo cada vez mais raro e caro. Da mesma forma, colecionava títulos. Fora lançado a um mundo competitivo demais. Precisava destacar-se dos outros. Protegia-se atrás dos títulos. Eram uma espécie de filtro que mostrava ao mundo apenas uma parte sua, a mais brilhante. Davam-lhe ares de importância. Ele gostava disso.

O problema era que, à medida em que aumentavam suas conquistas, mais exigente ficava seu limiar do prazer. Era como se vivesse sem rumo, em uma busca eterna por algo que ele nem sabia do que se tratar. Preenchia os buracos de sua alma com vinhos caros, mulheres, carrões.

Moldava-se a uma vida de aparências, às custas do sacrifício de sua essência. Vivia no piloto automático. Há tempos não acessava suas áreas mais profundas, estava sempre na superfície. O vinho da quarta-feira fez isso por ele.

Começou lembrando dela, Manuela. A mulher a quem amara e de quem pensara haver esquecido.  Tentou encontrar o ponto exato em que o relacionamento chegara ao fim. Não encontrou. Não houve uma grande crise. Houve mais um desgaste natural da relação. Pequenas coisas do dia a dia que se avolumaram. Palavras não ditas, mágoas não expostas, ressentimentos mútuos. Conviver é complicado. Eles não estavam prontos. Não naquela época. Talvez nem agora.

Entorpecido, travava diálogos mentais. Não sabia se estava completamente bêbado ou completamente lúcido. A ressaca seria infernal. Pelo vinho ou pela moral. Mas a sensação inebriante era boa. Ele, que andava anestesiado, pegou-se tomado de saudade. Saudade de Manuela. Saudade de ter com quem brindar. Saudade de amar e ser amado. Saudade de sentir saudade. De sentir prazer. De sentir qualquer coisa intensamente. Não, não estava imune a Manuela. Não estava imune à vida. E, sim, isso era bom.

4 comentários:

  1. achei seu argumento bom! aumente a dúvida dessa personagem. Temos que ficar sem saber o que ele está vendo, faça essas mulheres falarem coisas desconexas. Suas personagens são sempre interessantes!

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    1. Haha pós-moderno pero no mucho. Gostei da sugestão, da próxima criarei um personagem mais atormentado ;)
      Seus comentários são muito bem-vindos.
      Abçs.

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  2. Texto maravilhoso. Leitura prazerosa. Você escreve bem, muito bem. Voltarei sempre. Parabéns

    gilbertoleiteescreveu.blogspot.com

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    1. Obrigada pela visita. Que bom que gostou! Volte sempre que quiser.
      Abçs.

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